A humanidade do trauma: os incontáveis campeões no Maracanã

henrique salmaso
3 min readJul 11, 2021

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A Copa América que ninguém queria obviamente foi abraçada pelo governo das trevas, que a viu como uma grande oportunidade de desviar o foco na sua matança — e, assim, seguir matando. Era pouco provável que esse torneio nos reservasse alguma grande história.

Um dos poucos roteiros interessantes possíveis diante desse cenário era um título da Argentina, que não ganhava nada desde os tempos que Don-don jogava no Andaraí. Amigos próximos de Messi sempre falaram que ganhar um título pela seleção era o maior sonho da vida do craque, que já havia perdido quatro finais pela Selección e caminhava rumo à quinta com uma equipe claramente inferior.

Os mais pessimistas, grupo que me incluo, viam Leo indo de encontro aos seus demônios pela milésima vez. É que, apesar de não parecer, Messi é um ser humano que carrega traumas crônicos e incuráveis, e não tenha dúvida de que toda vez que Leo veste aquela camiseta, ele relembra daquela noite em 2014. Daquela noite em 2015. Daquela noite em 2016. Vestir a albiceleste, para Leo e seus amigos, é mexer no trauma. Falar sobre o trauma, sentir o trauma. E todos os traumatizados, seja lá por qual motivo for, entendem muito bem do que eu estou falando.

A Argentina parecia ser uma vítima do destino durante todos estes anos. Não me parece difícil imaginar que o destino escolheu aqueles jogadores para infernizar, para prometer mundos e fundos e entregar uma armadilha. Porque não é como se a Argentina fosse uma coleção de eliminações precoces com gerações ruins e sem expectativa; pelo contrário: a Argentina elimina grandes rivais, faz grandes jogos, revela jogadores históricos. A Argentina sempre chega. Mas a Argentina sempre perde.

Quis o destino que La Selección fosse campeã de um torneio do qual seria sede, mas que foi trocado às pressas para o Brasil, epicentro mundial da pandemia e rival histórico dos argentinos. Acho que, se pudessem escolher, eles prefeririam assim: superar o trauma dentro do Maracanã.

Com um gol tremendo de Di Maria, que atualmente joga mais do que já jogou em toda sua vida, não foi campeã apenas a geração de Scaloni, Lautaro, Montiel, Lo Celso e companhia. Também estavam em campo todos aqueles que foram vítimas das pegadinhas do destino. Não tente me convencer que não era Mascherano no corpo de De Paul ontem. Não tenha dúvida de que Gonzalo Higuaín também tocou de cobertura e saiu pro abraço, se livrando, enfim, do trauma dos seus gols perdidos nas finais. Que partidaça de Pablo Zabaleta no Maracanã. Ontem, ele estava no corpo de Gonzalo Montiel.

Existem mortos que estão mais vivos que os vivos. Mortos que seguem dançando, influenciando gerações e pensamentos. Alejandro Sabella, treinador da Argentina na grande campanha de 2014, que obviamente resultou num vice-campeonato, nos deixou no ano passado. Mas foi inspirado nele que a defesa argentina jogou tudo que jogou ontem. Em 2014, enquanto se repetia à exaustão que o ataque argentino era potente e a defesa fraca, o que se via em campo era o extremo oposto: um ataque econômico e uma defesa que espantava todas as chances adversárias. Exatamente como a Argentina fez no Maracanã.

O treinador da Argentina na Copa de 2010 também nos deixou recentemente. E se Leo já jogava como ele enquanto vivo, depois que foi para o outro lado a semelhança ficou ainda mais escancarada. Sou um cara cético, mas na bruxaria de Diego Armando Maradona eu acredito cegamente. Há dúvidas de que ele estava no Rio de Janeiro ontem?

Quando ainda podia contar os anos com os dedos das mãos, Messi sonhou, com a inocência de uma criança, em ser campeão com aquela camisa. Mas não cogitava que seria com tanta humanidade: com traumas, choros e a prova de que não há tristeza — nem glória — que dure para sempre.

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