A lição de Richarlison: por que assistimos futebol?

henrique salmaso
3 min readNov 24, 2022

--

Confesso que, durante os jogos dessa manhã, estava mais prazeroso observar a dança das partículas de poeira contra a luz do Sol que entra pela minha janela do que, de fato, acompanhar as partidas. Um Suíça x Gana em que a equipe de transmissão da Globo era bem melhor que o jogo, um Uruguai que quase nunca joga tudo que sua boa geração pode, uma Coreia que não encontrava seu craque Heug-min Son e por aí vai.

E aí me peguei pensando: por que assistimos a uma partida de futebol? No meu caso, não é só uma, nem duas, são incontáveis ao longo de uma semana — imagine durante toda uma vida. Ah… para mim, é fácil explicar, pois eu trabalho com isso. Mas bem antes de trabalhar eu já era assim.

Se alguém parasse para assistir à minha rotina de trabalho, ou à rotina de trabalho da maioria dos trabalhadores que apenas repetem movimentos alienadores diariamente, como nos ensinou aquele barbudo do século XIX, morreria de tédio rapidinho. Nenhum idiota passaria uma hora observando o que eu ou um trocador de ônibus estamos fazendo às 14h de uma terça-feira.

É que o futebol brinca com a subjetividade, tornando-se impossível prever o que acontecerá no segundo seguinte. E, no caso de uma Copa do Mundo, toda essa dinâmica do impensado se eleva à enésima potência. Algum maluco esperava que Luisito Suárez meteria a mão na bola naquele jogo bizarro contra Gana em 2010?

Observo este jogo do Brasil contra a Sérvia. Dez homenzarrões europeus perfilados na frente do goleiro, correndo de um lado para o outro. ‘Pra cima’, pedia o Tite. Sabe que tem defensores capazes de segurar a bronca sozinhos lá atrás. Muito volume, bola na trave. Até aí tudo dentro do esperado: ataque contra defesa.

Vinícius Júnior pega a bola. Sabe que o mundo todo espera algo diferente quando se veste essa camisa. Um passe mágico de trivela para Richarlison, que domina meio sem jeito. Pode rolar pra quem vem de trás, pode fazer a parede e tentar cavar um pênalti maroto.

Que nada. É meter pro gol. É hora do gesto técnico perfeito. Gesto de uma boniteza que só quem nasceu neste continente sabe fazer.

Richarlison nos convidou a brincar com o imprevisível. Nos mostrou por que estamos há tantas horas assistindo 22 homens correndo atrás de uma bola num país em que demonstrações públicas de afeto podem resultar em cadeia — para nós, que tanto abraçamos, tanto beijamos, nós que falamos tão alto, isso é totalmente impensável. Erasmo Carlos já dizia: “eu não quero conversa com quem não tem amor. Gente certa é gente aberta, e se o amor chamar eu vou”.

Afinal, se a vida é o que acontece entre uma Copa e outra, a última vida foi muito cruel conosco. Agora, ver esses meninos que já foram acostumados às queixas do estômago fazendo acrobacias inimagináveis com a bola talvez seja uma boa forma de começar a lavar a alma.

--

--