Eu não vi Fábio jogar

henrique salmaso
3 min readJan 6, 2022

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Fico pesaroso de não ter visto algumas lendas do futebol. Dos que não pude ver, o que mais me dói é Diego Maradona. Sou fã antes mesmo de gostar de futebol, de tanto que meu pai falava, e ainda fala, dele. Aquele gol contra a Inglaterra em 86, porra… Piada. Sem contar tudo que ele representa para o povo do sul global. Queria também ter visto todo o ápice do Zidane, peguei mais o final da carreira. Pelé nem precisa comentar, né? Zico, Sócrates, Cruyff, Beckenbauer. É muita gente.

Mas eu também não vi Fábio jogar.

A história, enquanto conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, é fria e imutável. Ela lá está para ser estudada, vasculhada e, é claro, disputada — tem doidinho que jura que o nazismo é de esquerda. Da mesmíssima forma, portanto, acontece com os jogadores de futebol que não atuam mais: eles influenciaram a evolução do esporte e estão no mural da eternidade, mas não são tocáveis no presente.

Fazer parte da história é um conceito frio e esquisito. Até onde eu sei, eu faço parte da história do meu colégio. Pesquise a turma que se formou no ano de 2013 e lá estará o meu nome, tão irrelevante quanto todos os outros.

Eu vi o volante Willian Magrão jogar no Cruzeiro. Foram 18 jogos (acabei de pesquisar). Vi os três gols do Luan no Morumbi, num jogo em que ele era o pior em campo — em qual jogo ele não era? Vi Maicosuel, Marabá, Riascos… todos eles estão na história do Cruzeiro.

Existe uma diferença enorme, portanto, entre fazer parte e ser parte da história. Pois é, eu não vi Fábio jogar.

Por 16 anos e 976 jogos, Fábio não fez parte da história do Cruzeiro. O goleiro, o Cruzeiro e os cruzeirenses viveram histórias que se confundiram. Os gestos do camisa 1 no decorrer das partidas eram os mesmos de um maluco que estava indo ao estádio pela primeira vez. Quem se lembra do dia em que Kerlon Foquinha, aquele, tomou uma TRAULITADA do Coelho? Fábio se teletransportou para o outro lado do campo numa velocidade que invejaria Usain Bolt.

Lembro de várias vezes em que eu estava destampando a última cerveja antes de subir pro estádio, e comentava com um amigo: vamo lá que o Fábio deve tá quase acabando o berreiro do vestiário. Pra que eu iria subir antes, pra cantar e incentivar, se Fábio já fazia isso por mim toda quarta e domingo?

Eu não vi Fábio jogar.

Tão certo quanto aquela matéria cretina da Suzane Von Richthofen saindo da cadeia no Dia dos Pais era o cortinho do Fábio no atacante se o jogo tivesse mais tranquilo. Fábio podia fazer isso mil vezes, nas mil a torcida ficaria IRRESPIRÁVEL por meio segundo. Quando ele pegou três — de três — pênaltis contra o Santos, tive a clara sensação de que, quando ele quisesse, pegaria cinco. Sua agilidade felina, imutável dos 20 aos 40 anos, é a mesma que eu sonhava em ter quando criança. Eu queria ser goleiro, mas não me foi concedido dom e nem altura suficientes.

A única coisa que Fábio não me representava era naquela cafonice de usar a gola da blusa levantada. Mero detalhe de quem acompanha os bastidores do clube.

As taças, e são muitas, não foram nem de longe protagonistas da passagem de Fábio pelo Cruzeiro. Sempre que teve a oportunidade de sair daquela que é chamada pelos coaches de “zona de conforto”, o goleiro preferiu inverter a ordem natural das coisas: Fábio quis viver no conforto da zona, e pareceu sempre muito satisfeito por ali. Na boa, em que planeta o Cruzeiro de 2019, 20, 21 e 22 é “zona de conforto”?

Não só por tudo isso, mas por muito mais, afirmo, com o coração ainda batendo a pancadas: eu não vi Fábio jogar. Nós jogamos juntos.

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